UMA CENTELHA NO CANAVIAL: MULHERES NEGRAS EM LUGARES OCUPADOS HISTORICAMENTE POR HOMENS BRANCOS NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS¹
Jocivaldo dos Anjos²

 Canavial é a hegemonia de um modelo de planta na agricultura de larga escala. É também o que chamamos de monocultura. Além disso, o canavial, para o povo preto, apresenta um local a ser superado. Pois, era o local destinado a trabalhos forçados para incrementar lucros para homens brancos brasileiros e, realizado por homens e mulheres negras trazidos de Africa de forma escravizada. Desta forma, o título adotado neste texto, aponta mais do que a possibilidade de plantação consorciada ou de “erva daninha”. A centelha apontada tem, por premissa, apontar para o que o movimento negro chamou num dado momento (e ainda uma parte chama) de tocar fogo no canavial. Ainda que sejamos ecologicamente corretos e politicamente também. Podemos plantar novamente, em outras terras, quiçá, outras plantas, mais plurais, para que não haja somente canaviais e seus herdeiros; para que não seja o canavial e sua herança a representação simbólica e real de um país no campo da produção de conhecimento. Eis algumas experiencias de quem diariamente habita neste locus de coragem e interação de dores, amores e pautas que têm sido destratadas pela hegemonia do canavial universitário. A contramola que insiste em balançar o sistema.
O censo escolar de 2016 apontou que menos de 3% entre docentes da pós-graduação é formado por doutoras negras. O portal Gênero e número  produziu um texto mais completo com estas informações http://www.generonumero.media/menos-de-3-entre-docentes-doutoras-negras-desafiam-racismo-na-academia/. O apontamento é desapontador, mas, também é desafiador e possível de alguma celebração se compararmos a anos anteriores. Se tratarmos de que no Brasil mulheres conseguem votar somente na segunda metade da década de 1940. Em se tratando de serem pessoas negras a quem até a década de 1980 possuíam proibições de representação simbólica e real das características que formam a essência deste povo. E que mulheres negras formam esta interseccionalidade de ter atravessada em suas histórias questões raciais e de gênero que acabam por produzir outras derivações desta condição. Há celebrações sim. A custas delas e de parcos apoios. Mas, como elas mesmo dizem, estão em marcha.
Érica Santana possui 23 anos. Migou para São Paulo na primeira década do ano 2000, onde convive hoje. Informa que sempre teve vontade de cursar Engenharia Civil, mas, que lhe foi apresentado a possibilidade de fazer outro curso. Algo mais ligados a “cursos de mulheres”. Como ponto de partida lhes foi apresentado o machismo interruptor de carreias possíveis de serem brilhantes. Ainda que parecida com o patinho feio ou o peixe fora d’água. Algo que o machismo ensina. Para mulheres, inclusive. Pois, machismo não é exclusividade do homem. É uma chaga de toda a sociedade. Logo, superá-lo faz parte de toda a sociedade. Um curso mais “feminino”, foi apresentado para Érica e ela o recusou. Engenharia é uma área com quase totalidade formada por homens. Mulheres não é somente uma exceção no curso. É mais do que isso: se trata de um corpo estranho. E, quando se trata de uma mulher preta e oriunda de família desabastecida pela colonização e o racismo estrutural no Brasil precisamos de constituir adjetivo que dê conta de classificar.
Estudando numa sala com 83 alunos, 20 estudantes, ou seja, pouco menos de ¼ é formado por mulheres. Já se trata um número a ser celebrado em meio às mulheres devido a ocupação deste curso na academia. Mas, destas, duas somente são negras. Em se tratando de pessoas negras, no geral, ao todo somam 11. São 9 meninos e duas meninas. Entendamos: Érica Santana e sua colega. As duas alunas negras fazem parte de 2,5% da turma a sua presença nesta sala de aula. Logo, teremos no mercado de trabalho futuro a cada 100 engenheiros formados pela Universidade Nove de Julho – UNINOVE, em São Paulo, pouco mais de duas mulheres negras e cerca de 10 homens negros. Caso seja esta a média de mulheres negras nas turmas do curso de Engenharia.
A existência de André Rebouças³, engenheiro civil que denomina orgãos em São Paulo pode ser considerado um acidente de percurso que o racismo não conseguiu impedir? Sim. Se hoje os números são estes, imaginem naquele tempo. E vejam que estamos tratando de uma Universidade Particular que muitos alunos possuem o FIES para estudar e não passam pelo crivo dos seletos vestibulares para a entrada. Inclusive Érica. Ah! Erica também informa que o debate sobre gênero não passa pela sua formação e que desconhecem o André Rebouças.
Erica conta que “geralmente o pessoal fala para as meninas procurarem emprego em escritórios, pois, mulher não é bem aceita na obra, mas não é bem um debate e mais uma conversa”. Uma determinação. Taxativa. Como quem diz: “engenharia civil não é lugar de mulher”. E, em se tratando de mulher preta aí piora um pouquinho, né? Ela completa: “os meninos arrumam estágio e emprego com mais facilidades na área”.
O Art. 2º, Cap. IV da Constituição Federal ao se tratar dos objetivos fundamentais da República prevê que o Estado deve promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outra forma de discriminação.   Desta forma, a entrada de mulheres, homens negros e especialmente de mulheres negras devem ser mais do que respeitado. Deve ser incentivado cumprindo outra condição assegurada na CF de 1988 que é o de contribuir para a igualdade social.
Clarice Ávila acaba de iniciar o doutorado como cotista na UFRRJ.  O Programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro foi um dos pioneiros a reservar 20% das vagas para alunos afros e indígenas. O programa funciona desde o ano de 2012 com Graduação e Mestrado, e, Clarice faz parte da 1° turma do doutorado.  Ela é uma entre as duas alunas negras que em 4 anos será Doutora em Ciências Sociais pela UFRRJ numa turma de 11 alunos. Menos de 20% da sala. É possível o cálculo de quantos anos será necessário até o alcance de a sociedade brasileira apresentar para a sociedade o mesmo percentual de doutores de acordo com a população existente com esta velocidade que temos? E vejamos que esta velocidade já se trata de um avanço. A Teoria da Curvatura de Vara explique um pouco, quiçá.   
  “Sabemos que a dificuldade é dupla pois, além de ser raro ainda virmos o Sistema de cotas ser implementado na pós, é também, em pleno século vigente, raro conhecermos os cientistas negros brasileiros” salienta Clarice. Informa ainda que o curso de Ciências Sociais é branco, hétero e macho. Desta forma não se trata somente de uma futura doutora. Se trata de uma pequena alteração simbólica, mas de importância ímpar, na estrutura de professores e pesquisadores brasileiros, que hoje não chega a 3% do total de docentes. Quando se trata de mulheres pretas com pós-doutorado o número é de 0,4%. Te cabe lá também, Clarice, que aos 47 anos tem a permissão social em poder fazer o curso de doutorado. Não se trata de predisposição e de coragem e meter a cara. Isso ela sempre teve, mas, as pessoas fazem a história de acordo com as condições ofertadas e possíveis.
A matéria do site Gênero e número informa que 24% de representação na docência da pós-graduação é formado por homens brancos, seguido por mulheres brancas que somam 19%. E, um dado que chama a atenção é que 44% dos docentes preferiram não declarar o campo raça. Se trata de um direito constitucional, inclusive, mas, o que influencia pessoas com alto grau de escolaridade de furtar a esta declaração? Não adentrarei por este caminho, por ora. Alguns outros dados são interessantes. Se entre as mulheres brancas o número de bolsas no CNPq é de 31%, as mulheres pretas possuem 3%,- 10%- as pardas 28% e os homens brancos 28%. O que se propõe a pesquisar as mulheres negras que não convence o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico? Quiçá a proposição de pesquisas na área de ciências humanas seja um dos problemas. É que a tradição nacional não prioriza muito áreas que atuem com a formação de seres ontológicos e questionadores do sistema social.
O presidente do Brasil, o mesmo que disse que aqui “há mulheres disponíveis para os turistas” informou que pretende investir em cursos que dão resultados mais imediatos. Os de exatas. Mas, não colocarei no atual presidente estas discrepâncias, mas sim, no projeto que ele representa e assenta suas propostas. Mas, em relevo merece colocar a lei 12.990, sancionada pela ex-presidentA Dilma Rousseff, que reserva aos cidadãos e cidadã negras e pardas a cota de 20% de vagas desde que o concurso tenha três ou mais vagas. Estes concursos, geralmente possuem poucas vagas. Mais uma questão a ser resolvida. Mas, já é um avanço importante. Pois, em três Estados da federação não há sequer uma professora preta: Acre, Amapá e Sergipe que lecione nos cursos de pós-graduação. Aponta estes dados que a interseccionalidade possui um caráter regional muito forte no Brasil de 2019 ainda. Não é novidade. Somente constatação.  
Erica e Clarice possuem um longo caminho a percorrer. Mas, não se trata de um caminho somente delas duas. Mas, de toda a sociedade brasileira. Uma sociedade que precisa de superar o machismo orientador das profissões e do racismo permitidor (mais permissivo, diga-se de passagem) de atrocidades com as pessoas a partir de suas representações simbólicas sociais. Que colocam cadeados nas cancelas do ensino e permite que uma parcela somente acesse o ensino fundamental, médio e quando o superior não passe da graduação. Clarice e Érica desafiam esta lógica. Que a ancestralidade as guie e a gente consiga irmanar esforços nesta subida de ladeiras. Sigamos!




1.     Este texto pretende ser inaugurador de uma coluna semanal em meu blog para tratar sobre questões raciais de diversas ordens. A primeira será destinada a analisar, de forma parca, a participação das mulheres negras brasileiras em cursos ocupados hegemonicamente por homens brancos, seja na graduação ou pós-graduação;
2.     Especialista e Mestre em Gestão Pública;

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