1 Acolherão os recolhidos ou recolherão os acolhidos?
2 Jocivaldo dos Anjos


O verbo acolher e o verbo recolher ambos vêm do latim. O primeiro significa dar acolhida, agasalhar, hospedar, amparar, abrigar, já o segundo tem o significado de tomar, retirar, levar consigo para guardar ou usar, esconder, sair do convívio social. Os dois são Verbos Transitivos Diretos - VTD, portanto pede-se um complemento: o objeto direto. Quem colhe, colhe alguma coisa ou alguém, logo se pode acolher alguém ou ser acolhido por alguém e quem recolhe também pode recolher alguém ou ser recolhido por alguém. Quem acolhe ou recolhe é o praticante da ação, sendo portanto o sujeito da referia ação, quem é acolhido ou recolhido sofre a ação é o sujeito paciente ou seja o objeto desta ação.
Iniciar este artigo utilizando os verbos da língua portuguesa tem um propósito muito mais político e ideológico do que gramatical, além de intencionalmente demonstrar que a língua, os verbo e palavras utilizadas em situações diversas não são imparciais, que o que falamos, falamos com intenções e a utilizamos para satisfazer alguém ou alguma coisa. Tem uma carga ideológica, sempre.
Esta abordagem inicial sucinta uma questão que devemos levar em consideração ao avaliarmos a proposta do toque de recolher (conforme a imprensa) e de acolher (conforme o juiz José Brandão Neto), juiz da vara da Infância Adolescência e Juventude que atua na comarca de Santo Estevão - BA e atua nos municípios de Antonio Cardoso Ipecaetá e Santo Estevão.
Se entendemos e percebemos que os verbos traz uma carga ideológica, logo  já observamos que o tratamento dispensado aos adolescentes destes três municípios está longe da proposta da lei de Nº 8.069 de 13 de julho de 1990, o famoso Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que foi fomentada no sentido de garantir direitos para as crianças e adolescentes e dentre estes direitos está o desenvolvimento pleno dos mesmos, bem como o seu protagonismo, um reconhecimento de que criança é adolescente não devem ser só pacientes de ações o tempo todo, muito pelo contrario, devem ser agentes, sujeitos, devem aprender com os seus atos e que até os próprios estudos comprovam que as pessoas aprendem vivendo é convivendo. Vivendo com outros, com os seus pares.
A partir do dia 15 de julho de 2009 adolescentes dos três municípios citados acima terão que aprender compulsoriamente (se é que compulsoriamente alguém aprende ou apreende alguma coisa) a conjugar estes dois verbos, pois as suas ações seram limitadas e os mesmos terão de retornar às suas casas em horário pré-definido pelo Juiz José Brandão Neto.
 Conforme o mesmo a medida está sendo tomada devido ao fato de estar acontecendo muitos crimes envolvendo menores nestes municípios. Ao que me parece, esta medida tem um tom de inversão da aplicação da lei. Em primeiro lugar se os adolescentes estão sofrendo com os crimes, estes deveriam, sim, serem o publico prioritário das políticas que preservassem e garantissem  o seu pleno desenvolvimento, onde os mesmo pudessem ser respeitados com a garantia e a aplicação do ECA e não os mesmos serem privados das ações suas diárias por conta de os mesmos estarem sofrendo por este crimes. Aparenta um pouco com aquela historia que há onde se diz que o marido chega em casa e encontra sua mulher no sofá com o amante e ele vai é joga o sofá fora. Ou fuga do problema central.
A tomada de uma medida como esta é mais uma de tratamento dos adolescentes como objetos de intervenção do Estado e não de um tratamento dos mesmos como sujeitos de direitos.
Como setores conservadores do Estado Brasileiro vêm demonstrando ao longo do tempo pouca vontade política de tratar da questão como deve ser, de garantir os direitos constitucionais resolve então tirar os adolescentes de circulação, desconhecendo assim o artigo 5º da Constituição Brasileira que preconiza o direito de ir é vir das pessoas e passando o problema adiante.
Conforme a portaria as crianças de até 12 anos devem chegar em casa até as 20h30; os de até 14 anos o retorno é até as 22h e os acima de 14 e inferior a 18 até às 23h. Esta tabela vale de segunda a quinta-feira. Na sextas, sábados e domingos haverá a tolerância de uma hora. Tenho observado adolescentes andarem nas ruas amedrontados, muitos quando vêem um carro da policia saem debandado na carreira, como se diz por aqui na zona rural em tempo de quebrar o pescoço, com medo, pois a medida prevê que se o adolescente for pego o pai ou a mãe terão que pagar 3 (três) salários mínimos, o que equivale a R$: 1.395,00. Claro que eles não corre por causa do dinheiro que o pai teoricamente teria que desembolsar mas sim por outros dois motivos preocupantes, primeiro: o medo de apanhar em casa dos pais, o que já demonstra de que o ECA poderá ser desrespeitado a partir desta medida e segundo pelo medo da policia. Estes e estas adolescentes já cresceram com medo da policia, em vez de crescer com confiança na instituição que teoricamente deve prestar serviços de segurança pública a todas e todos.
O combate a violência pode se dar de diversas formas, com programas educativos, com acesso às políticas públicas etc. entretanto a medida adotada é a da prisão tácita em cárcere domiciliar, a negação dos direitos que se levou anos para ser garantidos. Esta portaria baixada pelo juiz, conforme o próprio é inspirada na baixada na cidade de Fernandopólis, interior de São Paulo onde o juiz Evandro Pelarin adotou e confirma ter conseguido 55% no numero de crimes envolvendo menores, gostaria muito de saber se no geral o crime diminuiu e se os adolescentes em prisão domiciliar melhoraram seu desempenho na escola, tiveram acesso às políticas de garantia do seu pleno desenvolvimento. Mas a discussão que trago está para alem do crime, NÃO PODEMOS E NEM DEVEMOS TRATAR NOSSOS ADOLESCENTES E JOVENS COMO CASO DE POLICIA. Para o  Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, tal medida é um retrocesso, pois fere direitos constitucionais. O juiz Evandro Pelarin abordou sobre o tema: “ Temos de acabar com essa imagem falsa de que o ECA serve para proteger delinqüente juvenil ou passar a mão na cabeça de menor infrator. Precisamos tira o aspecto da impunidade que parece dar ao menor infrator” concluiu.
Nos municípios baianos as crianças ou adolescentes que tiverem acompanhadas do pai, da mãe ou do responsável poderão circular em qualquer momento e as que têm a partir de 16 anos poderá requerer uma “carteirinha de acesso” que será emitido pelo juiz da Infância Adolescência e Juventude. Esta solicitação ficará arquivada no poder Judiciário e quem possuir esta carteirinha poderá circular em qualquer horário.
Para o juiz, este eufemismo utilizando a nomenclatuara acolher no lugar de recolher é para significar que estes adolescentes estarão em casa, acolhidos, porem o que vale mesmo é o fato e não o adocicamento do nome. Se chamármos uma pessoa de esmolé ou de pessoa em situação de vulnerabilidade social e não tivermos ações para que esta tenha acesso a bens de consumo, principalmente alimentação, e ela morrer de fome de nada adiantaram a retórica verborrágica.
Conforme o juiz esta medida visa prever situações de risco para os menores e os pais estão o aplaudindo. Resta saber como o juiz concebe o desenvolvimento dos adolescentes. Também esta ação não vem tendo o apoio homogêneo dos conselheiros de Direito e Tutelares nestes municípios. O juiz afirma que os adolescentes perderam as rédeas e que há uma crescente participação de crianças e adolescentes em ações de delinqüência, quiçá seja de bom tom que prestemos atenção no que diz o ECA em alguns de seus artigos:
Art. 3º: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;
II - opinião e expressão;
III - crença e culto religioso;
IV - brincar, praticar esportes e divertir-se;
V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
VI - participar da vida política, na forma da lei;
VII - buscar refúgio, auxílio e orientação.
Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Art. 71. A criança e o adolescente têm direito a informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento
Art. 75. Toda criança ou adolescente terá acesso às diversões e espetáculos públicos classificados como adequados à sua faixa etária.
Parágrafo único. As crianças menores de dez anos somente poderão ingressar e permanecer nos locais de apresentação ou exibição quando acompanhadas dos pais ou responsável.
Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III - em razão de sua conduta e fundamentada da autoridade judiciária competente.
Observar tais pontos do ECA é importante para podermos observar o que está por traz de tudo isso e onde se pretende que estas ações desemboquem.
O juiz de Antonio Cardoso, Ipecaetá e Santo Estevão ainda afirma que ele não deve ficar parado só condenando. O artigo 106 do ECA diz o seguinte: Nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Bem, neste ponto o juiz não ficou parado só condenando na verdade, muito pelo contrario, imputou a condenação profilática aos adolescentes sem os mesmos terem cometido crime algum, na tentativa de proteção social. Resta saber que se estar protegendo, e por que. O juiz ainda alega que a prostituição infanto-juvenil é um outro motivo para a aplicação do toque de recolher. Vejamos se a postura não é de se fazer uma limpeza na rua para os adultos e bem apessoados desfilarem suas pompas e seus risos sarcásticos, demonstrando qual é o lugar que cada um deve ocupar.
O artigo 18 do ECA prever que: é dever de todos velar pela dignidade da criança é do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano , violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor, entretanto conforme palavras do juiz o constrangimento sofrido pelos adolescentes será suficiente para gerar o efeito desejado.
O adolescente que for pego ficará num local onde o juiz afirma ser um espaço adequado para o encarceramento e os pais, mães ou responsáveis assinará um termo de entrega sob responsabilidade e, provavelmente tomar um paxavoezinhos de orelha e um sabão por não saberem criar e educar os seus filhos. Mais um tratamento dos adolescentes enquanto objetos das ações, pois quem entrega, entrega algo a alguém. Um verbo transitivo direto e indireto neste caso. Nesta ação duas pessoas praticam a ação. O juiz entrega e o pai, a mãe ou o responsável recebe e mais uma vez quem é o objeto a ser entregue? – A prioridade absoluta, conforme o ECA.
Portanto, se faz necessário uma discussão ampla sobre esta portaria, mas para alem disso, há também a necessidade de ação de políticas publicas efetivas para este publico, em vez de se ter apenas pensamentos punitivos este municípios poderiam criar consórcios de municípios para a integração dos jovens e adolescente dos mesmos. Valorização da cultura, Garantir possibilidades de acesso a lazer, a cursos de formação. Claro que junto a isso, há os casos que se faz necessário o tratamentos com psicólogos, mas ver este público apenas como problema é querer transferir responsabilidades para quem não tem possibilidades. Os Adolescentes não podem pagar por um erro estratégico de negação de políticas públicas. É papel do Estado promovê-la. Estes adolescentes deverão sim ser acolhidos pelas políticas públicas eficazes e o que deve ser recolhido para dentro de cada um é a resistência de não ver nos jovens o potencial que cada um tem e querer tratá-los como objetos.





1 Jocivaldo Bispo da Conceição dos Anjos é estudante do curso de Letras com Espanhol pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, militante dos movimentos sociais e populares do Estado da Bahia, foi delegado pela Bahia em 2005 na Conferencia Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, foi Conselheiro Municipal do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente e está atualmente como Secretário Municipal de Agricultura no município de Antonio Cardoso. Há um texto, intitulado: Quando se deve iniciar a participação política dos adolescentes  que aborda sobre esta temática també no blog. ceavo.arteblog.com.br/3 , onde foi  feito um trabalho quando professor da Instituição de Ensino Colégio Arthur Vieira, no município de Anguera – BA.
2  Este trocadilho é feito no sentido de debater a idéia de acolhimento e recolhimento nesta medida adotada pelo juiz e da percepção que em qualquer das nomenclaturas adotadas as crianças e adolescentes não saem da condição de objetos das ações dos adultos.

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