AS ROUPAS FALAM
jocinegao@hotmail.com
Ser preto – por inteiro- tem um preço. Quando digo por inteiro, estou me referindo a defender as expressões culturais deste povo, a forma como ela se apresenta, em especial na fase de juventude, ter posturas de reconhecimento e de respeito para com este povo que têm um histórico de misturas de sofrimento e resistência. Propor o cumprimento de certas leis, a revogação de algumas e a criação de outras. Estas questões que podem parecer - e são – pequenas do ponto de vista de ser tomada como bandeira de luta pela parte do povo negro que se encontra em condição de maior esclarecimento e de menor vulnerabilidade social. Estas ações são de valor inestimável para o fortalecimento deste povo em todos os âmbitos.
Ser o principal suspeito ainda que não tenha cometido algum crime e não tenha antecedente criminal que o denote faz parte do cotidiano da grande maioria da juventude negra. Principalmente aqueles jovens que se definem por utilizar cabelo rastafári ou usar camisas de ídolos como Bob Marley, Racionais MCS, Peter Tosh, MV Bill, Jimmy Cliff dentre tanto outros. Ter vivenciado a situação de ser o suspeito numa tarde de sol de janeiro é o que me fez escrever este texto. Quando utilizo o artigo definido “o” para acompanhar o substantivo este tem o papel definidor, pois o negro não é mais um suspeito. Ele é sim o suspeito em potencial, que outrora a própria ciência o definiu assim e até hoje a clínica criminológica vem seguindo.
- Hoje, 04 de Janeiro de 2007, como quase todos os dias fiz os meus a fazeres normais no município de Antonio Cardoso: pela manha estudei e re- organizei a aula que daria durante a noite na cidade de Serrinha em um cursinho pré-vestibular.
Ao chegar a Serrinha desço na rodoviária e vou em direção à Praça Morena Bela, local onde está sediada a antiga Universidade do Estado da Bahia – UNEB campus XI. Próximo a esquina que fica em frente à A Associação Atlética Banco do Brasil, passa uma carro Ranger da policia por mim, acho a situação normal e prossigo sem olhar para traz. Ao dobrar a esquina sou surpreendido com uma fechada brusca do carro em que se colocou muito próximo a mim e desce deste, 4 homens, policiais, altamente armados, até com fuzil nas mãos e me ordena que eu me encostasse na parede daquele muro e pusesse as mãos à cabeça. De pronto só havia uma coisa a fazer: obedecer. Caso fizesse alguma pergunta poderia ser a última de minha vida. O que vale ressaltar é que este episódio todo ocorreu às 15h30min minutos, quando a cidade estava em pleno movimento com pessoas passando de um lado para outro, escolas funcionando...
Eu levava uma mochila nas costas portando os meus objetos pessoais e roupas, alem do material da aula. Estava muito pesada e quase que rasgando devido ao peso. Foi aberta a mochila, todos os objetos foram tirados, a minha carteira toda observada, para usar de um eufemismo, isso tudo sem me dirigir a palavra. Depois de observar os documentos e ainda sem saber que era eu e indagaram meu nome, o lugar onde morava e o que fazia ali. De pronto respondi para eles todas as perguntas. O comandante da operação pergunta: - Os dados conferem e recebe a resposta de que sim.
Quando eu os respondi que estudava na Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS e que naquela cidade estava indo dar aulas, percebi os cinco me encararem de vez. Ah sim: por conta de eu sofrer de astigmatismo uso óculos escuro que também de pronto tive que tirar assim como o boné, pois mês de janeiro no sertão todos devem saber o calor que se faz, né?
Pois bem, o tratamento para comigo se abrandou um pouco quando prestei estes esclarecimentos. - Você dar aulas de que?  Indagaram-me. – respondi: Espanhol. O comandante pede para verificar a veracidade das informações olhando meus documentos e o material para a aula. Não me solicitaram que eu falasse alguma palavra em espanhol para comprovar, mas me olhavam de cima abaixo.
Quando se convenceram de que eu estava falando a verdade me liberaram, mas minhas roupas e meu material estavam no chão ao lado do muro e eu tive que fazer outro esforço hercúleo para conseguir fechar aquela mochila agora em uma situação muito mais difícil do que a de meio-dia quando realizei esta tarefa em casa. Estava eu sob o olhar de transeuntes, estudantes funcionários das casas comerciais das proximidades e nervoso e com as mãos tremulas. Saíram os quatro homens “defensores da lei, da moral e da verdade”.
Faço um recorte agora para frisar que conforme Drummond os lírios não nascem das leis – concordo- a moral que é para alguns pode ser imoral para outros e a verdade só se faz verdade quando se cria uma mentira para ser o seu oposto. Neste caso eu era a mentira.  A mentira que aos 26 anos, morador da zona rural, agricultor familiar, filho de pai com 3a Serie e mãe analfabeta era professor de uma língua estrangeira. Eu era a mentira que naquele momento se fazia em verdade.
Ao saírem não me pediram desculpas, apenas me explicaram que aquele era um procedimento de rotina e que visava dar seguranças às pessoas, inclusive a mim. Explicando-me na tentativa do convencimento de que na verdade eu deveria agradecê-los pela gentileza de proteger a cidade de uma categoria que eu parecia, mas não era. Que mesmo eu sendo preto, jovem, magro e com algumas outras características que me fazia suspeito eu não era. Pois tinha talão de cheques, cartões de crédito, estudante de universidade, professor de cursinho e era a “classe média” estereotipada em uma divisão incoerente. Portanto eu era o povo que eles defendiam. Se for para minha segurança, utilizo-me agora de uma das frases do grupo Racionai MCS, que respeito e admiro muito que diz: “falou, falou, deixa pra lá. Vou escolher em qual mentira vou acreditar”.
Parti para o local do trabalho e aí me recordei do aparelho ideológico do Estado e do aparelho repreensivo do Estado. Tanto eu com eles, servíamos ao Estado, eu fazendo parte da contra - mola que balança e eles da mola, que não balança. No meu caso com a obrigação de denunciar e fortalecer o aparelho ideológico deste Estado e nos deles de proteger e conservar o aparelho repressor deste mesmo Estado. Não que eu ache que professores sempre denuncia e policiais sempre defendem. Há professores que defendem e há policiais que vão de encontro a este estado legitimo de direito.
Só uma coisa tenho que lhes informar eu estava trajando uma calça jeans folgado, boné, tênis, óculos escuros e uma camisa dos Racionais MCS, além de minha outras qualidades físicas e melaninosas.  Este foi o preço que paguei. Se sendo mais um da “classe média”, que o Estado defende e tivesse trajado de forma que representasse esta classe, quiçá nem percebessem minha cor.
Senhoras e senhores, as roupas falam.


















1.     Jocivaldo Bispo da Conceição dos Anjos é estudante do curso de Letras com Espanhol pela Universidade Estadual de Feira de Santana, militante dos movimentos sociais e populares no Estado da Bahia.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Servidor público não tem de ter empatia

Gel é a grande vencedora das eleições 2020 em Antônio Cardoso