CRONICA DE UMA MORTE ANUNCIADA NA BAHIA¹

Jocivaldo dos Anjos²


Eles chegaram, cantando os pneus e com a sirene ligada. Quiçá aqueles pneus e aquela zoada amedrontadora da sirene tenham a intenção de despertar o sentimento que todos sentem ao escutar. Uma sensação bang-bang. O cérebro não processa direito o que é o medo e o que é revolta ou até mesmo aventura.

Eram cinco, todos bem aparelhados, com armas pesadas e com cara de poucos amigos. Quatro homens e uma mulher. Um desceu com uma arma de calibre alto nas mãos e adentrou às dependências do hospital, logo depois outro, e logo veio a maca. Questão de segundos e, era arremessado do carro um corpo. Um corpo preto, magro, com idade aparentemente de menos de 30 anos. Não deu pra ver o rosto. Era muito sangue. Ah sim... Mais um corpo masculino. Mais um representante do estereotipo que o Estado elegeu para dizimar. Alias conforma Althusser os aparelhos do Estado devem funcionar. Talvez o cérebro que comanda este corpo não conseguiu ser convencido pelo aparelho ideológico do Estado, logo o aparelho repressivo do Estado teve que ser evidenciado, aliás, Estado é Estado.

 Meu Deus! – não sei se tive mais medo ou raiva. Na verdade senti uma impotência que preferi viver em outro lugar. Mas onde?
Ao adentrar no hospital os três acompanharam e dois ficaram, todos de arma em punho. Mais alguns minutos, uns dois acho, eles voltaram, entraram no carro e mais uma vez cantaram pneus e saíram.

O burburinho se inicia. Todos queriam saber se estava vivo ou morto. Era voz uníssona. Mas uníssona não era só as perguntas mas também as respostas ou pelo menos, possibilidades. Mas ainda assim muitos afirmavam: - é ladrão. Outros ficavam apenas dizendo que poderia ser vagabundo. As mulheres se estarreciam: - Meu Deus!

Minha mãe, que já completava dois dias naquele hospital, jamais vira situação parecida. Piorou com certeza o seu estado. Depois disse: - mas deve ser que era ladrão, né? Afinal é difícil ser diferente numa situação dessas. É o que Durkheim chama de fato social. É uma construção coletiva que mesmo quem quer ficar de fora acaba entrando porque alguns é destoante. E, doente destoante não dá. Sempre um precisa do outro.  Mas mesmo assim, seus olhos demonstraram discordar que alguém possa estar numa situação daquelas. Sem rosto!

Pouco tempo depois a situação já parecia estar amenizada. O cidadão que deu entrada não era mais a cena da vez, mas sim os parentes, pois o corredor daquele hospital estava lotado, e minha mãe também ocupava aquela dependência. A dependência do corredor. Mesmo sabendo que dependência só tem quartos. Ma depende. Depende de onde se está para ver de quem você está dependendo.

Passado uns trinta minutos se inicia os gritos, tão altos que chega ensurdecia. Um choro tão vivo, triste e verdadeiro que comoveu até os corações embrutecidos pela realidade de quem trabalha naquele ambiente no dia-a-dia. Um choro vivo que anunciava uma morte.

Duas senhoras. Uma aparentava ter uns 40 anos e a outra parecia não ter saído da adolescência. A mais velha bradava: - meu filho, eu quero o meu filho. Já a outra entre soluço e grito falava já rouca, com uma barriga enorme aparentando oito meses de gravidez: - ele nem pode conhecer seu filho. Era a mulher daquele corpo. Alguém que dependia das forcas daquele corpo para criar o filho. – ele nem vai conhecer seu pai, assim disse a mãe diante daquela barriga. Alisando-a e gritando.
Nenhum funcionário do hospital se aproximou da família. Nem assistentes sócias.

Uma cena desoladora!

Diante daquilo preferi ligar o radio do meu carro. Nesses momentos ou você foge ou você chora. Eu não tinha opção, tentei fugi no meio da música, ledo engano. Não consegui.
Neste momento chegou um taxi, com mais três pessoas. Eram os irmãos da vitima. As meninas, aparentando ter uma 12 e outra 14 anos gritavam. Gritavam muito. Pensei: - Meu Deus, que realidade! Que embrutecimento das pessoas. Uma desumanização. Aí me veio à mente o Weber: “ todo o Estado se afirma na violência”. Mas também pendei no Josué de Castro que afirma: “ uma mãe que observa seu filho morrer numa situação de violência extrema e que ao seu redor vai vendo essas cenas vai perdendo a sensibilidade” e talvez seja isso que venha ocorrendo com muitos jovens das periferias. Muitos desses jovens já não percebem possibilidade de futuro na realidade violenta e violentada em que vivem.

Um menino de aproximadamente 16 anos não falava. Não conseguia falar. Tentavam se abraçar, mas faltava um corpo para a completude do abraço e, logo depois se soltavam e gritavam.

Logo depois os funcionários do hospital já cantarolavam, brincavam, riam, assobiavam enquanto aquele choro horrendo continuava.

Daí se escutava: - “oxe, nessa semana em tal lugar derrubaram três”. Outro afirmava “pior foi ali em cima que há dois meses foram 11 mortos”.
Enquanto isso aquela família chorava. Mas morte naquele lugar era algo natural. Naturalíssimo.

Quando eu já estava de saída, em meio aquele choro, chegou um carro e estacionou a minha frente. Nele havia uma frase: “DEUS NUNCA ERRA”. Lembrei-me da frase duma musica dos Racionais que diz: “minha ideologia enfraqueceu, já nem sei quem tá errado: preto, branco, policia, ladrão ou eu?”
Daí não havia mais o que fazer lá. Será que é vontade de Deus?

Fui para casa me embriagar e tentar descansar a no outro dia tornar a voltar e procurar uma vaga para minha mãe fazer cirurgia. É vida loka né Jao?

1. Este texto foi construído, dentro do meu carro, no Hospital Ernesto Simões Filho, situado no Bairro Pau da Lima, cidade de Salvador – BA. No dia 14 de maio de 2010, ao presenciar a chegada da RONDESP com um jovem morto dentro do carro e dar entrada naquele hospital

2. Jocivaldo ds Anjos é Estudante do curso de Letras com Espanhol pela Universidade  Estadual de Feira de Santana – UEFS. Professor, militante dos movimentos sociais e populares do Estado da Bahia e está Secretário de Agricultura pelo município e Antonio Cardoso.

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